
Com apenas 4 em cada 10 mulheres satisfeitas com a autoimagem e 52% já criticadas pela aparência, cresce o sentimento de solidão em plena era digital
Comparações constantes com influenciadoras nas redes sociais. A ansiedade por não responder mensagens fora do horário de trabalho. A culpa por não manter uma rotina de autocuidado “instagramável”. Esses são apenas alguns exemplos de como a era digital tem influenciado a construção da identidade feminina e gerado novos desafios psíquicos para as mulheres.
De acordo com a pesquisa “Elas sobre Elas”, realizada pela MindMiners, apenas 4 em cada 10 mulheres estão satisfeitas com a própria autoimagem. Mais da metade (52%) relata já ter recebido críticas relacionadas à aparência. Um dado que chama a atenção: 81% dizem que outras mulheres fizeram essas críticas. Ou seja, a hiperconexão não apenas transforma a maneira como as mulheres se relacionam com o mundo externo, mas também impacta profundamente a forma como se percebem internamente.
“A construção do ‘eu feminino’ sempre esteve atravessada por fatores culturais e históricos. Mas, hoje vemos uma aceleração desses processos, mediada pelas redes sociais e pela hiperconexão”, explica a psicanalista e presidente do Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino (Ipefem), Ana Tomazelli.
Segundo ela, o excesso de comparação, a cultura da performance e a busca incessante por validação digital estão provocando novas formas de sofrimento emocional. Entre os efeitos mais recorrentes estão o aumento de quadros de ansiedade, depressão, transtornos alimentares e dismorfia corporal cada vez mais cedo. “As imagens de corpos e estilos de vida idealizados, frequentemente manipuladas por filtros e edições, criam um padrão inatingível de felicidade e sucesso. Isso leva muitas mulheres a um estado constante de insatisfação com a própria vida”, destaca Ana. “Aquilo que deveria contribuir para a ampliação do que é entendido como ‘bonito’, na verdade, tem se mostrado um tiro no pé’, completa.
Mulheres concentram 70% dos diagnósticos de ansiedade e depressão no Brasil
Além das questões ligadas à estética, os impactos da cultura digital têm se refletido de forma preocupante na saúde mental. O estudo da MindMiners também revela que 1 em cada 3 mulheres já recebeu diagnóstico de algum transtorno psicológico, como ansiedade ou depressão.
Dados da Think Olga, organização de inovação social, reforçam esse cenário: as mulheres representam 70% dos diagnósticos de ansiedade e depressão no país.
Outro índice alarmante: 33% das mulheres afirmam que deixam de ser quem realmente são por medo de críticas, julgamentos ou mal-entendidos. Inclusive, por parte de pessoas próximas, segundo a pesquisa da MindMiners.
“Estamos vivendo uma era de superexposição, mas também de hiper julgamento. As mulheres se veem constantemente pressionadas a corresponder a uma série de expectativas sociais — de aparência, de comportamento e de sucesso profissional — muitas vezes inalcançáveis”, analisa Tomazelli. “E é isso, também, que que contribui ppara movimentos como o 4B, na China, e o Boy Sober ao redor do mundo”, avalia.
Relações líquidas e a solidão digital
No campo das relações interpessoais, os efeitos desse novo cenário também são evidentes. A cultura do like, os vínculos mediados por aplicativos e a necessidade de exibir uma felicidade constante nas redes sociais têm afetado a qualidade das conexões reais.
A pesquisa “Entre Nós” revela que 45% dos brasileiros buscam parceiros nas redes sociais. 26% recorrem a festas e 23% a aplicativos de relacionamento, como Tinder e Badoo.
A intimidade mediada tornou-se uma nova realidade, com as plataformas digitais redefinindo profundamente os encontros amorosos e as formas de conexão afetiva. Essa dinâmica trouxe consigo uma exposição emocional que muitas vezes serve como moeda de troca para criar vínculos. Paradoxalmente, também emergiu o fenômeno da “solidão conectada”, onde a hiperconectividade convive com um profundo sentimento de isolamento.
“Ou seja, nunca estivemos tão conectadas e, ao mesmo tempo, tão sozinhas. As condições de heteronormatividade também fazem parte da equação e merecem nossa atenção. A superexposição nas redes sociais cria uma ilusão de pertencimento, mas, na prática, muitas mulheres relatam um vazio emocional profundo. Elas interagem o tempo todo, mas sentem que as relações são rasas, condicionadas por curtidas, visualizações e validações momentâneas. Existe uma dificuldade crescente de estabelecer vínculos reais, com espaço para a vulnerabilidade e a escuta genuína. Isso impacta diretamente a saúde mental e a autoestima. A mulher, que historicamente já carrega uma carga emocional elevada, hoje se vê tentando sustentar uma imagem de felicidade e sucesso o tempo todo, mesmo quando está emocionalmente exausta. Esse tipo de solidão é silenciosa e, muitas vezes, não reconhecida, porque vem disfarçada de conexão digital”, afirma a psicanalista.
Redes de apoio e resistência: a contracorrente digital
Apesar dos desafios emocionais impostos pela cultura digital, o mesmo ambiente que amplifica padrões inalcançáveis também tem se mostrado um espaço fértil para resistência, acolhimento e transformação. Movimentos como o body positive, o feminismo interseccional online e campanhas voltadas à saúde mental têm criado comunidades virtuais onde mulheres encontram apoio, compartilham vivências reais e desafiam a narrativa da perfeição.
“Por mais que as redes sociais sejam um terreno propício à comparação e ao julgamento, elas também oferecem a oportunidade de construir vínculos significativos com pessoas que compartilham das mesmas lutas e fragilidades. A criação de redes de apoio emocional é uma forma de ressignificar o uso dessas ferramentas e foi justamente essa uma das razões que nos levou a fundar o Ipefem em 2019”, destaca Ana.
Além disso, iniciativas como grupos de terapia online, perfis dedicados ao acolhimento emocional e influenciadoras que abordam a saúde mental de forma transparente têm ganhado força, mostrando ser possível criar espaços de escuta genuína e representatividade.
Um convite ao uso mais consciente
Diante desse cenário, é importante cultivar um olhar mais crítico e cuidadoso sobre o tempo e a forma como as mulheres consomem conteúdos e constroem suas interações digitais. Isso envolve tanto a adoção de limites práticos — como estabelecer períodos de desconexão — quanto um trabalho interno de autocompaixão e reconstrução da própria narrativa.
“O desafio está em retomar o controle da própria identidade e construir um ‘eu’ que seja mais verdadeiro, menos pautado por validações externas e mais conectado com as próprias emoções e desejos. A vida real é imperfeita, e está tudo bem que ela seja assim, mas não deveríamos estar sendo punidas por isso”, finaliza Ana Tomazelli.