Compulsão alimentar: uma batalha silenciosa O descontrole na hora de comer e a vergonha são características comuns e graves enfrentados por quem sofre com a compulsão alimentar

O descontrole na hora de comer e a vergonha são características comuns e graves enfrentados por quem sofre com o transtorno

“Eu comia sem parar, não tinha controle, só queria comer mais e mais, e não importava o que”. É assim que Fernanda, 26, descreve as crises de transtorno de Compulsão Alimentar que enfrentou durante oito anos, até de fato entender que estava doente. Ela conta que não lembra exatamente quando tudo isso começou, mas que precisou pedir ajuda quando sentiu que não tinha razões para viver. “Eu me vi presa, incapaz de sair de casa, afogada em lágrimas, isolada até da minha própria família. Minhas emoções estavam fora de controle, e a sensação de impotência e vergonha diante de minha própria mente me convencia de que nada mais tinha sentido, que não havia luz no fim do túnel, que minha existência seria sempre assim dali em diante.”

Muita comida em pouco tempo

Dentre os transtornos alimentares, a compulsão é mais comum hoje em dia. Como descrito pela nossa fonte, ela é caracterizada por uma ingestão de grande quantidade de alimento em um curto período de tempo (até duas horas) com a sensação de falta de controle.

Segundo Cirilo Tissot, Mestre em psiquiatria pelo IPq-USP e Diretor da Clínica Audeamus, é frequente que a crise apareça durante episódios de ansiedade e vazio emocional, em que a comida é relacionada à busca por mascarar esses sintomas. “É um processo que ocorre muito rápido. A pessoa come até se sentir empanturrada e tem até dor nesse processo, geralmente ela come sem estar sentindo fome, porque a tentativa é ganhar alívio.”

“A pessoa com compulsão costuma comer escondido, porque esse ato em si é vergonhoso para ela. Tudo isso faz com que ela se sinta cada vez mais deprimida e culpada dentro desse processo.”

Tópicos mais comuns da compulsão alimentar

Ainda de acordo com o psiquiatra, os principais indicadores da compulsão alimentar dentro do transtorno são cinco:

  • Comer rápido;
  • Comer até ficar empanturrada;
  • Comer mesmo sem sentir fome;
  • Comer escondido;
  • Se sentir deprimida ou culpada pelo episódio.

O constrangimento é um agravador da compulsão alimentar

O depoimento de Fernanda é forte, mas é a realidade do dia a dia de quem convive com o Transtorno de Compulsão Alimentar. A vergonha é um dos sentimentos mais profundos e delicados desse problema, já
que acarreta o isolamento total e dificulta que a pessoa peça ajuda e, consequentemente, possa se curar. “Em um primeiro momento, isso advém do descontrole, no qual a pessoa sente culpa, fica deprimida, cria uma insegurança com a vida e sobre aquilo que ela está se auto determinando”, pontua Tissot.

Mas o médico ainda aponta que um segundo é cultural, fruto da própria sociedade. “A magreza é considerada como símbolo de beleza, de aceitação social. Toda pessoa que está com sobrepeso, percebe-se marginalizada desse meio social. Uma pessoa com tensão da compulsão alimentar e que
é obesa percebe isso ao comprar roupas, nos assentos dos transportes públicos, na restrição de movimentos… Isso faz com que ela não queira mais sair e se isole.”

“A gordofobia faz com que a pessoa se sinta excluída e tenha um pensamento pré-definido do que ela pode fazer ou não pode fazer. Com essa exclusão, ela não consegue acompanhar muitas das atividades que as outras pessoas fazem.”

Pode surgir principalmente dentro de casa

Apesar do transtorno da compulsão alimentar estar muito associado à obesidade, de forma generalizada, existe um outro fator muito mais importante que ocorre dentro dessa condição: a agregação familiar. Entende-se que isso está ligado a um aprendizado e sistema de recompensa, no qual a proximidade familiar em eventos, almoços e jantares sejam supervalorizados. “Comer em abundância como sinônimo de felicidade e alegria faz com que a pessoa aprenda a seguir esse ritmo, ela cria esse hábito”, aponta o psiquiatra.

A psicóloga, terapeuta clínica e palestrante Luana Couto reafirma que esse cenário pode ser visto como uma predisposição para a compulsão. “É comum ouvirmos relatos sobre hábitos familiares e culturais tais como: ter que repetir o prato para ‘mostrar que gostou’ do alimento, comer tudo para ‘não desperdiçar’ ofertas de presentes em troca de comerem ‘mais uma colherzinha’, ameaças de punição para raspar o prato, etc. Tais práticas agem como ‘rituais’ e fazem com que a pessoa, inclusive, deixe de perceber e obedecer as respostas fisiológicas do centro de saciedade no cérebro”, explica.

… E vice-versa

E o cenário contrário também é verdadeiro. “O culto pela magreza associa o fato de emagrecer a dietas restritivas, nas quais a pessoa pula refeições ou procura comer alimentos pouco calóricos, de menor valor nutritivo, como forma de não engordar, o que é um equívoco”, diz Cirilo Tissot.

“O contato social dentro de uma valorização de comer em abundância, ou mesmo a ideia de que dietas restritivas possam ser benéficas ao organismo, dão origem à questão da compulsão alimentar em pessoas que, teoricamente, não têm a genética para tal.” – Cirilo Tissot, Mestre em psiquiatria pela IPq-USP

Compulsão alimentar x bulimia x anorexia

Os transtornos alimentares mais frequentes são a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e a compulsão alimentar. De acordo com Tissot, o transtorno da compulsão alimentar se difere da bulimia e da anorexia nervosa pelo fato da primeira não gerar um dismorfismo corporal. “Apesar de haver uma preocupação em engordar, ela consegue ter uma visão mais real corporal do que na bulimia ou na anorexia nervosa”,
esclarece. “Na anorexia nervosa, a pessoa se enxerga muito gorda mesmo estando abaixo do peso. No caso da bulimia, há a compulsão alimentar, há aspectos compensatórios, então a pessoa tenta vomitar, pois existe uma preocupação excessiva com o emagrecimento.”

Magreza não é sinal de saúde

A psicóloga Luana ainda ressalta que alguns fatores podem ‘maquiar’ a compulsão alimentar, considerando a ausência de indicadores que apontem desvios, como por exemplo, pessoas que não têm sobrepeso e que apresentam exames ‘sob controle’, e também quem aceita o sobrepeso sem estar no controle da saúde. “Embora uma pessoa possa amar como se vê no espelho, é importante se inteirar sobre sinais silenciosos que colocam a vida sob risco, como a circunferência abdominal, gordura em determinados órgãos, etc.”

Reconheci que preciso de ajuda com a compulsão alimentar

Tem como tratar a compulsão? Sim, existe tratamento, e apesar de ser um processo delicado, não é necessário esperar que haja dor ou algo mais grave para buscar ajuda e solução, como explica Luana. “O recomendado é a atuação multidisciplinar, envolvendo médicos para investigar questões relativas ao funcionamento do corpo, nutricionista e psicoterapia para avaliar as questões que envolvem padrões comportamentais e emocionais.”

Na maioria dos casos, especialistas recomendam a terapia comportamental cognitiva. “A abordagem pode apoiar de forma mais pragmática a busca de causas específicas do paciente que o trouxeram a tal cenário de compulsão. Bem como a particularidades de como ele lida com a situação, ajudando-o a criar um novo repertório funcional e saudável”, justifica.

“Em qualquer cenário, é importante evitar atuar com restrição, seja na alimentação ou na mudança de padrões comportamentais.”

Remédio para emagrecer… posso tomar?

A estratégia de tratamento também pode contar com o apoio medicamentoso, como explica Luana. “Justamente para apoiar as mudanças, evitar que haja rebote e que a compulsão retome com maior força. Mas essa intervenção deve ser feita por profissionais habilitados e especializados.”

O psiquiatra Cirilo Tissot reafirma a importância do tratamento medicamentoso, que pode transformar a vida do paciente, mas faz um alerta. “O problema é quando as pessoas começam a generalizar as medicações sem compreender as diferenciações que existem entre elas. E em que momento elas devem, de fato, ser utilizadas.”