Se você pertence a uma religião e seu vizinho à outra, o bom senso estabelece que cada um siga cultivando a sua fé, uma vez que o Brasil é um país laico. Ou seja, determina o respeito a todas as crenças, certo? Errado. De acordo com o Disque 100, canal do Governo Federal que acolhe denúncias de violação de direitos humanos, o número de registros de intolerância religiosa cresceu 140% entre 2018 e 2023. Ao longo de 2018, esse canal recebeu 615 denúncias contra 1.418 em 2023.
Tentativa de combater a intolerância religiosa
Não por acaso, o Ministério da Igualdade Racial lançou há alguns meses um programa para radiografar e combater o chamado “racismo religioso” no Brasil – termo que vem substituindo “intolerância religiosa”. Uma vez que grande parte das denúncias formalizadas está relacionada às religiões de matriz africana, engrossadas majoritariamente por populações negras, o programa tem como meta instituir projetos que previnam episódios de racismo religioso e reduzam os números da violência e da discriminação contra as vítimas.
Mas por que isso continua acontecendo, ainda que a intolerância religiosa seja considerada um crime no Brasil, previsto pela lei 14.532, com pena de até cinco anos de prisão e pagamento de multa? “A punição inibe temporariamente comportamentos, mas não muda a tendência de se comportar de determinada maneira”, explica a psicóloga Mônica Valentim. “É necessário punir para se obter algum controle social. Mas não é possível esperar que isso vá fazer com que as pessoas aprendam a se comportar melhor”, complementa.
A intolerância é um comportamento ancestral
Para Mônica, o atavismo pode explicar a reação dos intolerantes que cometem violência física ou psicológica contra pessoas de crenças diferentes. Atavismo é a tendência de reproduzir comportamentos, costumes e ideias ancestrais de forma não consciente. “Ainda carregamos muitos traços das sociedades pré-agrícolas, quando a sobrevivência de um grupo dependia da destruição de outros”, cita. Nessas sociedades, a escassez de alimentos levava indivíduos reunidos num grupo a combater estranhos para proteger esses recursos.
“O que vai nos tornar menos primitivos é nossa capacidade de observar os sentimentos que experimentamos para que possamos responder ao que está surgindo em nós de um modo mais pró-social, não apenas porque isso soa bonito, mas porque é nossa única possibilidade de sobrevivência enquanto espécie”, continua a psicóloga.
Ela acredita que a globalização cultural, reforçada por sentimentos nacionalistas, conservadores e discriminatórios, também vem contribuindo para aumentar os casos de intolerância ou racismo religioso. O intolerante se sente no direito de preservar seus valores e suas verdades, mesmo que isso afete a integridade do próximo.
O que fazer, então, para mudar essa situação? “Acredito no desenvolvimento da percepção de que estamos todos conectados. Enquanto nos percebermos separados uns dos outros, estaremos sempre sob ameaça. Pode parecer utopia, mas, se olharmos para todos os momentos mais tristes da história, vamos notar que eles vieram sempre com esse fomento à ideia de superioridade de um grupo em relação a outro”, destaca a psicóloga.
Lentidão na Justiça
Na opinião do professor Alex Santana França, docente da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus (BA), e especialista em metodologia do ensino de história e cultura afro-brasileira, a lei que equipara injúria racial ao racismo, e que também protege a liberdade religiosa, só não traz resultados mais efetivos por conta de falhas do próprio sistema. “Há todo um processo, muitas vezes moroso, que envolve não só a denúncia do crime, mas também a investigação, o julgamento e a possível punição. Na maioria dos casos, esse processo não se completa, reforçando ainda mais o sentimento de impunidade e de descrença na lei”, afirma.
Para França, o combate ao racismo religioso deveria envolver todas as instâncias da administração pública, inclusive escolas. Ele defende que os professores sejam instruídos sobre diversidade cultural para que os casos de racismo religioso não permaneçam isolados na esfera judicial.
“Infelizmente, o debate público sobre religião no Brasil ainda não consegue se desvincular do privado, então, muitos professores e professoras não separam suas crenças religiosas pessoais do compromisso maior que é a formação dos estudantes para a cidadania e o respeito às diferenças, a fim de garantir uma boa convivência coletiva. Daí a necessidade de se investir em cursos de formação inicial e continuada com ênfase nesses temas”, argumenta o professor.