True crime: o que está por trás do prazer em conhecer crimes reais Foto: Pixabay

Séries de true crime ganham muitos adeptos por despertarem o sentimento de juiz, afirma psicanalista

Não é de hoje que produções que narram crime e assassinatos em séries estão entre as mais assistidas pelo público. Esses filmes são tão poderosos que ajudaram a alavancar a carreira de atrizes como Jamie Lee Curtis, a eterna Laurie Strode da franquia Halloween. Cujo primeiro filme foi lançado em 1978, e que venceu o Oscar recentemente por Tudo em todo Lugar ao mesmo tempo (2022). Ou Jodie Foster, que ganhou o Oscar interpretando a policial Clarice Sterling, no prestigiado O Silêncio dos Inocentes, de 1991.

No entanto, não muito longe do terror, o gênero true crime também procura exibir o estrago feito pelos assassinos em séries que agem na sociedade. Mas tem levantado questionamentos éticos a respeito da exposição dada a estes criminosos. Que matam de forma cruel e ainda continuam “glamourizados” ou em evidência na sociedade.

O ponto de partida

Tal debate se acentuou quando a Netflix começou a divulgar, em 2022, a série Dahmer: Um canibal Americano. A obra conta a história de Jeffrey Dahmer. Um assassino em série que matou e se alimentou dos pedaços de 17 rapazes, a maioria negros ou latinos, na cidade de Milwaulkee, nos Estados Unidos. 

Em dez episódios, a série mostra como Dahmer, interpretado por Evan Peters, seduzia e levava garotos para seu apartamento. E então os drogava em seguida e, após mortos, separava as partes de seus corpos, para se alimentar. Ainda, a série expôs como o racismo estrutural e a conivência da polícia norte-americana – por Dahmer ser um homem branco – facilitaram para que o assassino continuasse matando entre 1978 e 1991. Somando 13 anos de crimes bárbaros e intensos.

O resgate desta história não agradou aos familiares das vítimas. Nas redes sociais, Eric Perry, primo de um jovem de 19 anos que foi morto pelo assassino, relatou que a obra estaria “traumatizando mais uma vez, e para quê?”. Com isso, questionou seus seguidores de quantas obras neste estilo precisamos.

Além desta série, tivemos também filmes sobre histórias reais do Brasil, como os realizados sobre Suzane Von Richthofen, na pele da atriz Carla Diaz.

Exposição de crimes reais e luto dos familiares

Para Kelly Faria Simões, PhD em Psicossociologia pela UFRJ e especialista em luto, é preciso dosar a curiosidade entre desvendar a mente de um assassino e o quanto isso fere novamente os familiares das vítimas. “Séries de true crime trazem controvérsias éticas que precisam ser pensadas socialmente, em relação ao custo-benefício entre a curiosidade de uma mente criminosa, em um caso real, e os danos possíveis aos familiares das vítimas que enfrentaram a tentativa de um luto após uma morte traumática”, explica.

Ainda, ela nos diz que o luto após a morte traumática, mesmo com a prisão do criminoso, tende a trazer importantes complicações emocionais. Além de respostas às vezes disfuncionais para a vida. “Os familiares precisam, na maioria das vezes, de um suporte psicológico e até mesmo psiquiátrico para auxiliar nas reações prolongadas ao luto. Trazer à tona o caso pode levar ao surgimento de emoções que poderiam estar se encaminhando para um processo de elaboração”, completa.

Conseguiu encarar a história de true crime

Entretanto, em caminho oposto, Gloria Perez afirmou que somente após o documentário Pacto Brutal (2022) é que ela conseguiu viver definitivamente o luto. A obra venceu como Melhor Série Brasileira Documental, no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2023. Ela narra a história do assassinato da própria filha, Daniella Perez, cometido por Guilherme de Pádua e Paula Thomaz em 1992,

Dirigido por Tatiana Issa, a obra, que se tornou um fenômeno na HBO MAX, conta a história do crime a partir dos autos do processo. Encarando então o ponto de vista da vítima e a história com base na investigação criminal.

Neste caso, Kelly Simões explica que o documentário funcionou com um remédio para mãe da vítima. “Gloria viveu um luto prolongado de 30 anos, com a morte traumática da filha. Com sentimentos intensos e desfavoráveis, que dificultaram a aceitação da perda, mesmo após a prisão do assassino. Mas foi com o lançamento da série documental que ela começou o processo de elaboração do luto. Sentimentos múltiplos de impunidade, saudade, ódio, dentre outros, vieram como obstáculo à experiência da perda para a elaboração do luto de Gloria. Então, ela traz a arte para significar a dor da sua perda”.

O gênero pode influenciar as pessoas a cometer um crime semelhante?

Para a psicanalista e psicopedagoga Andrea Ladislau, o true crime, olhando com um olhar psicoterápico, não é um gênero que instiga a cometer crimes. “Na verdade, esse tipo de conteúdo ganha cada vez mais adeptos porque mexe com o inconsciente do indivíduo. De modo a aguçar nosso lado juiz, ativando o julgador que há em todos nós. Além disso, faz com que o indivíduo se sinta instigado a dar uma solução, a palpitar sobre os motivos reais daquela situação apresentada. O espectador se sente parte daquele processo de alguma maneira. Mesmo que inconsciente, pode até em sua fantasia assumir o papel de justiceiro punitivo e corretivo. Ou mesmo se colocar no papel da vítima, para melhor compreensão dos fatos. Quem comete crime, possui motivações, muitas vezes antigas. Vivenciadas em seu passado ou dentro de um contexto interno que vai muito mais além do que um gênero literário/cinematográfico.”

Apesar disto, Andrea chama atenção para a romantização deste tipo de conteúdo, porque ela é um grande perigo, principalmente para a criança que está em fase de construção de sua identidade e de seus valores. “E o romantizar, traz a armadilha de mostrar que o crime e o provocar a dor podem fazer com que o indivíduo misture vida real com ficção, e que enxergue que a violência e o ferir podem ser caminhos de solução de problemas. Não chega a ser um incentivo para tornar a pessoa um criminoso, mas pode fazer com que situações simples como a agressividade da fala e o trapacear ‘ingênuo’, sejam ações que possam passar despercebidas”, destaca.

Ficção ou realidade?

Tito Prates, curador de romance policial, suspense e terror da Unibes Cultural, nos conta que o true crime não é um gênero que nasceu necessariamente da Literatura de Terror, ou seja, da ficção. Ele afirma que “este tipo de produção está ligada ao jornalismo, em especial à produção de Truman Capote, que narrou crimes nos Estados Unidos através dos relatos dos próprios assassinos”.

Ainda, Tito diz que o true crime não é necessariamente um gênero que fala somente sobre mortes e assassinatos. “O escândalo de Watergate, nos EUA, também foi fundamental para o fortalecimento desse gênero, pois muito foi produzido sobre isso e é também considerado um true crime.”

Mesmo assim, Tito, que é autor de uma biografia da escritora Agatha Christie (considerada a mestre dos crimes) e do livro Museu do Crime (Editora Monomito), no qual narra crimes bárbaros que ocorreram no Brasil, relembra que “os autores de do gênero, quando estão produzindo séries, pensam, em como vão conquistar um público maior com a suas obras. Então, eles dão uma romantizada, sim”. Mas sobre a série Dahmer, da Netflix, Tito afirma que ela está muito próxima ao que realmente aconteceu. 

Sempre pela verdade

Neste mesmo caminho, em busca da realidade, Paolla Serra, jornalista e autora do livro Caso Henry: a morte anunciada (Editora Máquina de Livros) que fala sobre o caso do menino Henry, que morreu em março de 2021, após sofrer torturas do padrasto, causando grande comoção nacional, afirma que trabalha “pela busca incessante pela verdade e tenho a retratação dos fatos, com a isenção e a imparcialidade necessárias, como o meu maior desafio profissional”.

Para a autora, jornalisticamente falando, os trabalhos são produzidos, sejam eles reportagens, livros ou até séries para a televisão, com objetivo de cumprir o importante papel social de retratar fatos, baseados tão somente em investigações oficiais, e evitar que outros crimes semelhantes aconteçam. “Entretanto, não se pode ter controle sobre os tipos de interpretação que cada leitor ou espectador terá das obras. Ao escrever uma matéria, por exemplo, me atenho tão somente a busca pela verdade, sem exaltar ou romantizar os envolvidos em torturas e homicídios, mas mostrando ao público suas características e seu modo de agir para justamente impedir que se façam novas vítimas.”

Neste sentido, Tito Prates assume a mesma postura de Paolla Serra “o bom true crime é aquele que narra os fatos com base naquilo que realmente aconteceu, sem julgamento ou idealizações. Agora, como cada um vai interpretar já é outra história. Vai depender muito da sanidade e bom senso de cada espectador”, encerra.

Para você lembrar!

O escândalo político de Watergate foi uma invasão realizada por membros do Partido Republicano, na sede do Partido Democrata em 1972, com o objetivo de descobrir informações eleitorais do partido rival. O acontecimento foi considerado tão grave que motivou a renúncia do então presidente à época, Richard Nixon, que foi considerado o mandante da ação, além da prisão de diversos membros do alto escalão do Partido Republicano.