“Eu já sofri assédio no trabalho” é uma frase dita por milhares de mulheres diariamente

Aqui vai uma breve história sobre assédio no trabalho: “Era uma manhã quente no meio de fevereiro. Eu acordei bem mais cedo que o normal para me arrumar para o meu primeiro dia de estágio, ainda estava sem acreditar que tinha conseguido aquela oportunidade. Finalmente, depois de algumas reuniões para entender melhor sobre a empresa e as atividades que eu iria desempenhar, chegou o momento de conhecer os meus colegas de trabalho. De longe eles acenavam enquanto se apresentavam, alguns me davam apertos de mão, mas um, em particular, fez questão de beijar meu rosto. Na hora o incômodo me levou a pensar: “para de ser doida, o cara só está te cumprimentando e sendo gentil, afinal ele é seu superior”.

Nos dias que se sucederam, aquela atitude virou rotina, até que, em uma manhã específica, eu estava incomodada demais para continuar aguentando aquilo. Quando cheguei no trabalho, só estava ele no andar e eu dei um bom dia tímido para não me aproximar, mas ele se levantou, se colocou entre mim e minha mesa e disse, rindo, que só me deixaria passar se eu lhe desse um bom dia apropriado.

Mas eu, na minha primeira experiência de trabalho, com 19 anos, não fazia ideia do que era assédio no ambiente de trabalho. Você, leitor, sabe?” Esse é o relato de Fernanda*, profissional que nós não vamos citar o nome verdadeiro por questões óbvias. Ela foi mais um caso de assédio no trabalho, algo infelizmente tão comum que, em uma reunião de mulheres com profissões e idades diferentes, todas disseram ter passado por alguma situação constrangedora.

São vários os casos de assédio no trabalho

De acordo com Maíra Liguori, Diretora de Think Olga – uma organização não-governamental de inovação social com foco em criar impacto positivo na vida das mulheres -, existem alguns tipos de assédio no trabalho. “A gente tem o assédio sexual, que é o ato de tentar obter vantagem sexual em relação a uma outra pessoa. Em geral, existe uma relação de subordinação, ou seja, a pessoa em uma posição de maior poder geralmente assedia a que está subordinada”, afirma a profissional.

Existe também o assédio moral, que é a violência moral, os insultos e constrangimento de pessoas no ambiente de trabalho. “O assédio moral pode ser ascendente, descendente ou misto, ou seja, pode ser em qualquer tipo de relação. Pode ser horizontal, inclusive entre pares, e ele está muito pautado nessa conduta que visa desrespeitar e constranger o outro. E também existe a discriminação, que passa por algum eixo de identidade da pessoa, né? A gente está falando de discriminação racial, discriminação de gênero, LGBTfobia, ou capacitismo, etarismo também. Então, aí a gente está falando sobre uma outra camada de agressão, muito em virtude da condição ou característica de alguma pessoa”, completa.

Zero saúde mental

O assédio no ambiente de trabalho pode afetar a saúde mental de quem passa por isso. Para Karen Valéria da Silva, coordenadora de psicologia da Docway – empresa pioneira em soluções de telemedicina no país -, isso não deixa de ser uma forma de violência psicológica que, assim como qualquer outra, traz consequências e impactos para o colaborador. “O indivíduo pode ter impacto na produtividade, na motivação, nos relacionamentos interpessoais, pode gerar humor deprimido, crises de pânico, impactando inclusive no absenteísmo do trabalho.

Além disso, alguns sintomas gerados podem, inclusive, ter impactos na rotina pessoal do indivíduo, trazendo sofrimento e prejuízo clinicamente significativo”, explica Karen. Além disso, a profissional aponta que quando falamos em depressão ou qualquer outro transtorno mental, é importante termos claro que eles possuem causa multifatorial. “Isso significa que, um fator isolado, por si só, não é capaz de causar um transtorno. Para o indivíduo desenvolver depressão, por exemplo, são considerados fatores genéticos, sociais, ambientais e psíquicos. No entanto, um fator pode sim contribuir para o desencadeamento de um transtorno mental, como a depressão, caso o indivíduo possua predisposição para o desenvolvimento do transtorno”, completa.

Mulheres são maioria, infelizmente

Em dados divulgados por Maíra Liguori, Diretora de Think Olga, as mulheres são as que mais sofrem assédio no trabalho – sendo mais de 80% das vítimas -, sem contar o assédio moral, que também incide mais sobre as mulheres, justamente por conta do preconceito de gênero. “As mulheres são vistas como inferiores a seus pares masculinos e, por isso, elas estão mais suscetíveis, mais vulneráveis, às agressões de assédio sexual e moral. Ainda existem outros recordes para além do gênero, então, pessoas negras também sofrem com discriminação, pessoas LGBT+ também sofrem com discriminação”, contextualiza.

Mas por que uma grande maioria não denuncia o assédio no trabalho?

O assédio ainda é muito pouco denunciado e é um tabu no ambiente de trabalho, porque ele implica em situações de poder. Nada mais é do que um exercício de poder, é muito clássica essa ligação. E Maíra explica que esse poder justamente evita, ou impede que a vítima se pronuncie e se posicione em relação ao seu agressor. “Dizer ‘não gosto que você me trate dessa maneira’ é muito difícil quando você está numa posição de subalternidade. É muito difícil identificar e conseguir falar abertamente sobre essas violências, porque elas ainda são vistas como uma insubordinação, como um tabu. Além disso, existe também o histórico de que as empresas não têm atuado devidamente para combater o assédio e em alguns casos, em grande parte dos casos, ainda acaba privilegiando o agressor.”

Uma vítima que ousa denunciar o assédio, muitas vezes, é colocada na geladeira, transferida de área ou sofre sozinha as consequências da denúncia. Enquanto o agressor permanece protegido. “Esse é um comportamento clássico que vem sendo cuidado e olhado pelas empresas, mas que ainda existe um longo caminho pela frente quando falamos em justiça de colocar essa vítima em uma posição protegida, acolhida e com as investigações e apurações adequadas para evitar que essa violência siga ocorrendo.”

Vamos denunciar!

O advogado Wagner Giovanini, especialista em Compliance e Sócio-Diretor da Contato Seguro, afirma que, fora das empresas, a denúncia pode ser feita pelos telefones 181 ou 190. “Mas, no âmbito de uma empresa, o Canal de Denúncias é o melhor caminho. Entretanto, ainda existem muitas empresas que não possuem Canais de Denúncias. Essa deficiência deverá ser rapidamente corrigida, pois duas Leis Federais entraram em vigor recentemente, obrigando a implementação de canais dessa natureza. Uma é a Lei 14.457/22 que instituiu o ‘Programa Mais Mulheres’ para todas as empresas que possuem CIPA. A outra é a Lei 14.611/23 que trata da ‘Igualdade Salarial entre homens e mulheres’.”

Precisamos de acolhimento

Maíra explica que uma pessoa que sofreu assédio dificilmente tem a prontidão para denunciar. “Além do canal de denúncia, a gente também recomenda que as empresas tenham uma equipe ou algumas pessoas capacitadas para o acolhimento dessa pessoa. Para assim evitar julgamentos e vitimização, que são bastante comuns. ‘Por que você aceitou a carona do chefe? Ele te assediou no carro porque você deu mole’.”

Na nossa cultura, esse julgamento é muito comum e frequente. Ter pessoas capazes, treinadas para agir nesse acolhimento da maneira mais adequada é o ideal. “E contar com o apoio de testemunhas é uma questão muito importante, porque o assédio é um tipo de agressão muito difícil de comprovar. Ele acontece nas entrelinhas, às vezes ele de maneira privada. Ter testemunhas, pessoas que apoiam ou que estejam presentes e possam servir como apoio na hora da denúncia também é bastante importante.”

Qual a punição para assédio no trabalho?

De acordo com o advogado, dentro da empresa, além da legislação trabalhista, espera-se haver um conjunto de normas e políticas que tratem explicitamente desse tema. “E são essas as diretrizes que vão definir as punições cabíveis. Dessa maneira, elas podem variar de acordo com o entendimento de cada organização. Tal explicação vale não apenas para os casos de assédio, mas sim, para todas as formas de desvios de condutas, irregularidades ou ilicitudes. Para o caso dos assédios, embora possa haver outros tipos de sanções dentro da empresa, a demissão e a advertência são bons exemplos de punição adicional ao que se prevê nas legislações aplicáveis.”

Direitos

Se uma pessoa sofre assédio no trabalho, ela pode ter direito a vários tipos de compensação, dependendo da legislação e dos regulamentos locais. Giovanini aponta os casos abaixo.

  • Indenização por danos morais e materiais: uma vítima de assédio pode buscar na justiça uma compensação por danos morais devido ao sofrimento e humilhação que enfrentou;
  • Tratamento psicológico: dependendo do caso e da gravidade do assédio, o empregador pode ser responsabilizado e obrigado a custear tratamentos psicológicos para a vítima;
  • Rescisão indireta: se o ambiente de trabalho se tornar insustentável devido ao assédio, o empregado pode solicitar a rescisão indireta do contrato de trabalho. “Isso significa que ele pode terminar contrato por justa causa imputada ao empregador, recebendo todos os direitos trabalhistas como se tivesse sido demitido sem justa causa”, explica;
  • Medidas disciplinadoras: a empresa, ao tomar conhecimento do assédio, deve tomar medidas disciplinares contra o agressor, que podem variar desde uma advertência até a demissão por justa causa, dependendo da gravidade do ato;
  • Obrigação de prevenção: as empresas têm a obrigação legal de prevenir, combater e punir o assédio no ambiente de trabalho. Isso pode incluir a criação de canais de denúncia, treinamentos, e políticas claras contra o assédio;
  • Proteção contra retaliação: “é importante notar que a vítima de assédio também está protegida contra qualquer forma de retaliação por parte do empregador ou colegas por ter denunciado o assédio”.