Por incrível que pareça, a noção de que crianças precisam ser protegidas é um entendimento relativamente moderno em nossa sociedade. Isso porque, a ideia de infância só surgiu em meados do século XVII. Antes disso, elas eram vistas praticamente como adultos em miniatura (por essa razão o trabalho infantil era normalizado).
Hoje em dia, embora saibamos que as crianças estão em fase de desenvolvimento e maturação cerebral, muitas pessoas parecem não compreender bem por que essa fase é essencial para uma vida adulta plena. Por isso, a Mente Afiada conversou com Ana Wasilewski, psicóloga clínica especializada em infância e adolescência. Para entender as influências que a infância exerce em nossa vida e o que fazer com os padrões tóxicos desenvolvidos nela.
De que maneira a dinâmica familiar durante a infância pode afetar a forma como uma pessoa lida com conflitos na vida adulta?
“A dinâmica que a família tem vai basicamente construir quais habilidades a criança vai desenvolver para lidar com conflitos relacionais e toda sorte de problemas. São os chamados modelos internos de funcionamento. Ao nascer, temos alguns poucos recursos “de fábrica”, e vai ser através da família que descobrimos o que é e como age um ser humano. Os pais são a ‘vitrine de toda a humanidade’. E a criança tende a repetir o comportamento daqueles à sua volta, começando já nos primeiros anos. A partir da adolescência, nos damos conta de que nem tudo que nossa família faz funciona lá fora. E então começamos a tecer críticas e buscar novos modelos internos. Mas esse é um processo que pode demorar muitos anos. Porque é como se na infância já fosse instalado o ‘software’ de ‘como lidar com os relacionamentos’, construído com as interações familiares. Modificar isso pode demorar bastante tempo e exige um grande esforço.”
Como a infância influencia o desenvolvimento emocional de uma pessoa?
“A infância é uma das grandes fundadoras da capacidade de lidar com as emoções. Nesse período, as primeiras experiências de apego, afeto e frustração com a família vão ensinar à pessoa como se sentir. Existem vídeos na internet, por exemplo, nos quais as mães fingem que seu filho bateu a cabeça e a criança, vendo a mãe consolando-a, começa a chorar como se realmente estivessem sentindo dor. Pode parecer drama, mas na verdade, a criança não sabe o que significa aquela experiência até que os principais cuidadores ensinem a ela como se sentir.”
E a adolescência?
“Será o outro fundador. A adolescência vai ser um momento no qual vamos pegar tudo aquilo que vivemos em casa e vamos pôr à prova no mundo. Os relacionamentos além da família passam a ter uma importância fundamental, porque é através deles que temos oportunidade de ver se aquilo que aprendemos até então se aplica nos outros espaços. É uma fase de questionamentos e descobertas, marcada por conflitos internos e a busca por autonomia. As duas fases desenvolvem nossa maturidade, em menor ou maior grau.”
Qual a influência de ambas em nossos traumas?
“A infância e a adolescência vão construir quais serão os nossos ‘gatilhos’. Gatilhos são eventos nos quais a pessoa, estando inserida, vai ter uma dificuldade de processar emocionalmente para reagir de forma adequada. Esses gatilhos não são apenas eventos extremamente violentos. Podem ser coisas que, sem percebermos, nos remetem a situações antigas que não conseguimos resolver à época, trazendo à tona um sentimento de mal-estar. Quando temos uma atitude ‘infantil’, quer dizer, imatura, o que ocorre é que emocionalmente não aprendemos a lidar de forma adequada com aquela situação na infância, então as atitudes de uma criança – que é uma pessoa ainda com poucas habilidades e recursos relacionais – são os únicos comportamentos disponíveis que temos para agir. Mesmo sendo uma crítica que ofende as pessoas, para a terapia é de grande ajuda quando a pessoa percebe que foi infantil numa situação, pois aí podemos trabalhar para melhorar.”
Como a educação emocional na infância pode prevenir a formação de padrões tóxicos no futuro?
“A educação emocional é essencial para prevenir a formação desses padrões nos relacionamentos, porque vai capacitar a criança a identificar suas próprias emoções, entender o que as trouxe à tona, aceitar a sua presença – isso é fundamental, porque muitos de nós já aprendemos a identificar o que sentimos, mas perceber a presença de uma emoção considerada ‘negativa’ nos deixa desesperados, buscando impedir que ela aconteça – e, por fim, expressá-las de maneira saudável. Quando aprendemos desde cedo a reconhecer nossas emoções e a lidar com elas, também adquirimos habilidades importantes como empatia, comunicação assertiva, independência e autorregulação. Essas competências vão ajudar a construir relacionamentos saudáveis no futuro, pois permitirão que o indivíduo lide com conflitos de maneira equilibrada, respeite os limites do outro e evite comportamentos destrutivos, como agressividade, manipulação e comportamento passivo-agressivo.”
Quais estratégias podem ser adotadas por adultos que identificam padrões tóxicos em seus relacionamentos originados na infância?
“É fundamental buscar uma maior compreensão sobre a origem dos padrões e entender como eles se manifestam. Uma estratégia importante é trabalhar a autorreflexão, tratando das dinâmicas familiares vividas e como elas influenciam suas reações emocionais e relacionais. Além disso, o desenvolvimento de habilidades para lidar com as próprias emoções, como a autorregulação, é crucial para aprender a reverter posturas inadequadas que tendemos a apresentar. Aprender a se comunicar de forma assertiva, expressando necessidades e sentimentos de maneira clara e respeitosa, também pode ajudar a romper ciclos disfuncionais. Estabelecer limites saudáveis, tanto para si quanto para o outro, também vai contribuir muito para criar relações mais equilibradas e satisfatórias.”
Como a terapia pode ajudar a reverter ou mitigar os efeitos negativos de uma educação disfuncional na infância?
“A terapia vai ter funções diferentes, a depender da fase da vida em que o paciente está. A psicoterapia na infância é muito relevante, porque traz a oportunidade de ter um profissional acompanhando se os padrões de comportamento que estão sendo aprendidos não trarão prejuízos futuros. Aí há grandes oportunidades de intervir junto com os pais para analisar e ajustar condutas do grupo familiar. Já na adolescência, a pessoa já vai ter identificado muita coisa que não gosta na família e em si mesma, mas há uma dificuldade de encontrar novos modelos de comportamento. Então, a terapia funciona como um espaço para experimentar e refletir sobre novas formas de agir. Já na vida adulta, a pessoa chega cheia de queixas sobre si e seus novos círculos sociais, mas é difícil encontrar onde aqueles problemas começaram. O terapeuta então vai ajudar o paciente a compreender como todas as suas experiências anteriores moldaram sua forma de agir. A partir daí, novos caminhos podem ser traçados. Em todos os momentos da vida, a terapia aparece como um espaço no qual o paciente vai ter oportunidade de contar a própria história e dar significados às suas experiências, inclusive aquelas extremamente dolorosas.”