A hesitação pela imunização ganhou força durante a pandemia da Covid-19. E ainda vemos muitas pessoas colocando em risco a própria saúde devido a fake news
Edward Jenner criou a primeira vacina registrada na história no século XVIII. Nascido na Inglaterra em 1749, Jenner dedicou cerca de 20 anos da sua vida para estudar sobre a varíola. E, em 1976, realizou uma experiência que rendeu a primeira vacina da história.
A experiência da vacina
O médico inglês observou pessoas que se contaminaram por uma doença de gado – chamada de cowpox, um tipo de varíola que acometia as vacas -, ao ordenhar esses animais. E, consequentemente, se tornaram imunes à varíola humana. Com isso, Jenner inoculou o pus presente em uma lesão de uma ordenhadeira, chamada Sarah Nelmes, que possuía a cowpox, em James Phipps, um garoto de oito anos. Phipps adquiriu a infecção de forma leve e, após dez dias, estava curado. Mais tarde, quando o médico inoculou no garoto o pus de uma pessoa com varíola, notou-se que ele estava imune. Em 1798, Jenner divulgou seu trabalho e mudou completamente o mundo.
Erradicada!
Em 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a erradicação da varíola após esforços ao redor do mundo com as campanhas de vacinação. A varíola, inclusive, é a única doença humana erradicada através da vacinação. Estima-se que a doença tenha matado até 300 milhões de pessoas apenas no século 20, e até 500 milhões em seus últimos 100 anos de existência.
Vacinação é importante, sim
As vacinas representam a política de saúde pública mais importante e que mais reduz a mortalidade em todas as faixas etárias após o saneamento básico. “Só que às vezes, a gente pensa: ‘bom, eu tomo a vacina e fico protegida individualmente’. Mas ela não é uma ação individual, é uma ação coletiva”, explica a Viviane Maimoni Gonçalves, diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan.
A especialista aponta que, individualmente, a pessoa até pode ficar protegida, mas caso ela não tenha um bom sistema imune, fazendo com que não responda tão bem a vacina, consequentemente, talvez ela não fique protegida com aquela dose. Ou, também, temos os casos de pessoas que não podem se vacinar por alguma recomendação médica. Em ambas as circunstâncias, a doutora afirma que a imunização só funciona de forma coletiva. “E foi coletivamente, através de um esforço da Organização Mundial da Saúde, que conseguimos erradicar a varíola, com todo mundo se vacinando e fazendo sua parte.”
Doenças eliminadas
De acordo com Ana Sartori, médica infectologista e professora associada do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), “além da erradicação da varíola, a vacinação permitiu a eliminação da poliomielite (paralisia infantil) e da rubéola das Américas, além do controle de doenças como o tétano neonatal, coqueluche, sarampo, e as meningites bacterianas no Brasil”.
A profissional aponta duas observações importantes referentes à vacinação dessas doenças.
- Erradicação: quando a doença não existe em nenhuma outra região do mundo, e a vacinação pode ser suspensa. É o caso da varíola, dada por erradicada pela OMS em 1980.
- Eliminação: quando a doença não existe mais em uma (ou mais) região. A poliomielite, por exemplo, foi eliminada em várias regiões do mundo, incluindo as Américas, mas ainda persiste em alguns locais e, por isso, pode ser reintroduzida nas áreas onde foi erradicada.
- Controle: grande redução do número de casos da doença, de maneira que não ofereça mais riscos à saúde pública, porém podem ocorrer ocasinalmente. É o caso do tétano neonatal, que não é passível de erradicação, uma vez que a bactéria responsável (Clostridium tetani) vive no solo.
Elas estão eliminadas, mas podem voltar…
Nos últimos anos, o sarampo vem sofrendo com a baixa cobertura das vacinas e houve reintrodução da doença no Brasil, através de pessoas que vieram da Europa ou migrantes da América Latina. “A culpa é do imigrante que trouxe de novo o sarampo para nós? Não! A população não estava vacinada e ficou vulnerável, então a doença se espalhou de novo. A cobertura vacinal está muito baixa e isso é muitíssimo preocupante. O índice de vacinação da poliomielite também é baixo. Existe um risco real de reintrodução dessa doença, e é uma tristeza muito grande, é uma doença muito triste. Quando a criança não morre, fica com sequelas bem graves”, afirma a diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan.
E o que aconteceria se elas voltassem?
Um grande número de mortalidades, no caso da poliomielite. “Muitas pessoas não se lembram ou até mesmo nem sabem, mas dependendo do grau da gravidade da poliomielite infantil, ocorre a paralisação do diafragma, e as crianças, para continuarem vivas, precisaram usar o que chamávamos na época de pulmão de aço para fazê-las respirar. Hoje temos alguns casos de cadeirantes e pessoas que usam muleta devido essa doença. Quando a poliomielite não mata, ela debilita muito”, explica Viviane.
Relato
Em 2021, durante uma entrevista no programa Conversa com o Bial, o jornalista e apresentador Boris Casoy fez um forte relato sobre ter contraído poliomielite quando tinha um ano de idade, assim como sua irmã gêmea. Casoy revelou que, como consequência da doença, ficou com movimentos mais débiles. Na época, não existia vacina contra a infecção.
“Se houvesse vacina, eu e minha irmã gêmea não teríamos sido vítimas da poliomielite. Cada criança salva é um cidadão lá na frente.”
O jornalista e apresentador afirmou que ele e sua irmã apenas se curaram porque seus pais tinham condições financeiras e puderam levá-los para realizar o tratamento nos Estados Unidos.
(obs arte: fim do relato)
As pessoas não acreditam em vacina… Por que?
Viviane Maimoni Gonçalves, diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan, afirma que esse movimento “anti-vacina” vem desde o início da ideia de imunização, na verdade. “Quando Jenner criou a vacina da varíola, as pessoas acreditavam que se transformariam em vacas, pois a vacina era produzida a partir do vírus bovino, o vaccinia, que apresentava reação cruzada com o vírus humano. Usaram-no como um vírus atenuado, já que não causava uma doença real em humanos.”
Ou seja, essa repulsa nasceu juntamente com o surgimento da vacina, é um temor pelo que é novo na ciência. “A hesitação vacinal, especialmente aqui no Brasil, já vinha aumentando um pouco antes da pandemia. É algo que surgiu entre as classes mais escolarizadas e mais abastadas, por incrível que pareça. É claro que essas pessoas têm acesso a todo o aparato de saúde, boa alimentação, saneamento básico, mas foi surgindo esse pensamento de: ‘é melhor pegar doença e estimular o seu sistema imune naturalmente’.”
A diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan exemplifica com o lançamento das vacinas da Covid-19, em que muitas pessoas duvidavam da qualidade, acreditando que foram desenvolvidas em “tempo recorde”. “Isso não é verdade; a pesquisa do RNA mensageiro já somava 20 anos e foi conduzida pelos pesquisadores Katalin Karikó e Drew Weissman, que ganharam o Prêmio Nobel por esse estudo.” Mas o grande problema são os médicos que são contra as vacinas e fazem campanha para as pessoas não aderirem à imunização”, analisa. Para a especialista, a diferença da época do Jenner e de agora, é que atualmente existe mais facilidade em disseminar mentiras.
Contornando os ignorantes
Para contornarmos essa situação e aumentarmos o número de peAna Sartori, médica infectologista, explica que antes de serem incluídos nos programas de vacinação, os imunizantes passam por testes rigorosos, cujos resultados são avaliados por agências regulatórias (FDA, nos EUA, e ANVISA, no Brasil), que autorizam (ou não) sua comercialização. Além disso, após a comercialização, a segurança e a eficácia das vacinas são monitoradas continuamente pela farmacovigilância. Já Viviane, completa que devemos fortalecer a campanha de vacinação para convencer a população a se imunizar pela segurança individual e pública.